sexta-feira, 3 de setembro de 2021

APENAS UM POUCO FRACO DO PULMÃO


2 de setembro de 2021

Paulo Setúbal (Divulgação)


Com amável dedicatória, recebi do admirável escritor Fernando Jorge a segunda edição, revista e muito ampliada, de seu livro “Vida, Obra e Época de Paulo Setúbal”, publicado pela Geração Editorial (S. Paulo – 2008). Como as demais biografias do Autor, é um trabalho minucioso e que esgota todas as fontes possíveis, respondendo a todas as indagações que possam ser feitas. Assim também acontece quando ele trata, neste volume, da estadia de Paulo Setúbal em Lages nos anos de 1919 e 1920, realizando um levantamento completo das atividades do escritor paulista naquela cidade serrana, valendo-se inclusive de informações de Nereu Corrêa em livro que ele enaltece pela seriedade da pesquisa.

O SINISTRO DIGNÓSTICO

Quando se constatou que ele “estava um pouco fraco do pulmão”, expressão usada para mascarar a tuberculose ou peste branca, o jovem escritor e jornalista foi aconselhado pelos médicos a procurar local de altitude mais elevada, clima saudável e ar puro. Os recursos de então eram ainda precários no combate à terrível enfermidade. Diante disso, ele se fixou por uns tempos em Campos do Jordão e, considerando-se curado, retornou à Paulicéia. Formou-se em Direito e entregou-se à advocacia, ao jornalismo e aos escritos, sempre com sucesso. Nesse período foi acometido da gripe espanhola que então grassava, salvando-se por milagre, o que levou os médicos a vetarem sua permanência na capital paulista. Seu irmão mais velho, João Batista Setúbal, era casado com a filha de um fazendeiro lageano e residia na chamada Princesa dos Campos. Dirigiu ao irmão um convite para passar uma temporada na cidade, cujo clima se recomendava ao tratamento dos fracos de pulmão. Paulo Setúbal logo aceitou, movido inclusive pelo desejo de aventura, e rumou para Lages.

ADOTADO PELA CIDADE

A cidade o encantou desde a chegada e sua simpatia pessoal, seu jeito extrovertido e conversador conquistaram de pronto a simpatia dos moradores. A comunidade o adotou sem restrições.

Era o único bacharel formado da cidade e seus anúncios logo apareceram nos jornais, oferecendo os serviços profissionais e registrando ser formado pela Academia de Direito de São Paulo. Em pouco tempo ficou cheio de serviço, foi contratado para alguns inventários e tratou deles com sucesso. Inventários, naquele meio onde imperava o latifúndio, constituíam os mais cobiçados e bem remunerados serviços advocatícios. “Ganhei fama e passei a trabalhar sem tréguas” – escreveu ele.

O DINHEIRO SE ESVAÍA

Mas o dinheiro ganho desaparecia como água pelo vão dos dedos. É que ele aprendera a jogar e se entregava “à paixão torturante das cartas” – segundo suas próprias palavras. Esquecendo-se da doença, passava noites em claro, em locais fechados, aspirando o ar viciado e a fumaça dos cigarros. Numa só jogada apostava todo o ganho de uma longa e trabalhosa causa. Não satisfeito, prosseguia nas noitadas pelos cabarés e boates da periferia, sempre acompanhado de bizarras figuras de tropeiros e negociantes de gado. Mas, ao que parece, vivia feliz, exercitando “a ânsia de viver, de mandar às favas a lembrança das horas negras” – para repetir o biógrafo.

E que mais fazia ele na cidade campeira que se estendia entre coxilhas ondulantes? Mantinha uma existência ativa, cheia, movimentada. Amante da natureza, percorria a cavalo as cercanias da cidade, enlevado com a luta dos peões, a lida braba dos rodeios, as correrias de homens de bombachas e chapéus de abas largas. Em redor do fogo, ouvia suas histórias e sugava mates amargos. Observava com intenso prazer “o mais admirável bosque de pinheiros que me foi dado contemplar” ao sol que se punha por trás da última coxilha.

NOS JORNAIS E NO CARNAVAL

Enquanto isso, os dois jornais da cidade – “O Planalto” e “O Lageano” – publicavam seus trabalhos, em prosa e verso, além de notas sobre suas atividades. Artigos, crônicas, contos, poemas românticos e humorísticos, comentários sobre temas históricos e do momento e até uma espécie de manifesto em favor de Rui Barbosa, candidato a presidente da República.

Para espairecer, “participou de um bródio, servido entre chalaças e ditos espirituosos, ao som de uma orquestra de flautas, violinos e cavaquinhos.” Aderiu de pronto ao animado carnaval da cidade, em 1919, e compareceu ao baile à fantasia, no Clube 1º. de Julho. À sua entrada, registrou um jornal, “voltam-se cabeças curiosas; fisionomias iluminam-se num sorriso acolhedor e travessos corações tremem… tremem num presságio de assalto irresistível.” O Dr. Paulo Setúbal era um sucesso na terra lageana.

NO JÚRI E OUTRAS TRIBUNAS

Atua em rumoroso julgamento pelo júri (ao que tudo indica o único), profere discursos e conferências de repercussão que são analisados e comentados pelos jornais. Produz e publica poemas e mais poemas. E advoga com intensidade.

Não obstante, continua a jogar e a cometer abusos contra a saúde frágil. Adoece, tem que guardar a cama, e se recupera, ansioso por voltar à vida ativa. Nas tardes de folga, comparece à roda que se forma na farmácia “do culto e verboso Otavinho Silveira. Ali encontrava vários amigos: o Dr. Nereu de Oliveira Ramos, formado pela Faculdade de Direito de São Paulo; o Dr. Cândido de Oliveira Ramos, seu parente, formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e que no desempenho de sua profissão havia prestado serviços ao exército sérvio, durante a Primeira Grande Guerra; o Dr. Walmor Argemiro Ribeiro Branco, primeiro lageano a formar-se em medicina; o jornalista Manuel Tiago de Castro, redator de “O Lageano.” Ali a boa prosa corria, como em geral nas boticas das pequenas cidades, enquanto o chimarrão fechava a roda. Relatou o referido farmacêutico que o governador Hercílio Luz havia convidado Setúbal para o cargo de Promotor Público da comarca, mas ele declinou. Essas informações foram colhidas pelo Autor do livro na obra de Nereu Corrêa.

BATE A SAUDADE

Estava em Lages há mais de um ano e as saudades começaram a bater. Apesar do sucesso pessoal e profissional, resolveu retornar à Paulicéia. A viagem até Florianópolis, que durou três dias, foi conturbada e cheia de incidentes, inclusive com o carro pernoitando, encalhado, num dos frequentes atoladores da estrada. Dorme num casebre humilde, acolhido por um casal muito pobre, e fica indignado com a sovinice de um fazendeiro, seu companheiro de viagem. Em São Paulo, retoma as atividades que o conduzirão à glória literária e à morte precoce, vitimado pela implacável peste branca.

O ESTÁGIO NÃO INFLUENCIOU 

Lages, com a reconhecida hospitalidade campeira, lhe abriu todas as portas e sua permanência ficou marcada para sempre na memória da cidade. Segundo Nereu Corrêa, no entanto, a experiência não se refletiu na obra do escritor e nenhuma influência exerceu sobre ela. Em seu livro “Confiteor”, Paulo recorda com saudade sua epopeia na Princesa dos Campos como um momento mágico de sua vida.


Promotor de Justiça (aposentado), advogado e escritor. Tem 59 livros publicados em variados gêneros literários. É detentor de vários prêmios e pertence a diversas entidades culturais. Assina colunas no Jornal Página 3, na revista Blumenau em Cadernos e no site Coojornal - Revista Rio Total.

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